[MÚSICA] SOBRE OS ÁLBUNS "MEIO" E "BRAÇO DE MAR" DE MARCOS LAMY

 Alentos para este tempo e além

Com os álbuns Meio (2020) e Braço de Mar (2025), o músico maranhense Marcos Lamy se consolida como um artista cujo profundo senso de continuidade e coerência entre arte e vida é alento para os ouvidos, a mente e o coração.

POR TALITA GUIMARÃES


Em abril de 2020, defini a sonoridade do álbum Meio (Marcos Lamy, 2020) como um “alento para agora e além”. A humanidade vivia a pior pandemia da história e tudo o que tínhamos nas mãos — além de muito álcool 70% — eram incertezas sobre um vírus mortal altamente transmissível. Confinados, nos comunicávamos com o mundo estritamente através da internet.

Foi nesse contexto que a música do maranhense Marcos Lamy estabeleceu seu próprio Meio seguro de nos tocar em nossos isolamentos: 11 canções profundamente embebidas em sentido cultivado ao longo de muitos anos. O Lamy de 2020 já vinha de longe, maturado por uma trajetória que se fez consistente graças a estudo, pesquisa e ao franco interesse do músico formado em Ciências Sociais por experimentar processos de criação honestos consigo e com a própria arte em diálogo com seu tempo, lugar e atuação.


Com aquele disco, disponibilizado gratuitamente nas plataformas digitais, o músico cientista social entregou sua performance mais madura e segura até então, tanto como compositor quanto como um intérprete cuja musicalidade transborda da voz, que desde muito cedo deu sinais de que vibraria na frequência da cultura popular maranhense. Se me permito afirmá-lo é porque acompanho com especial atenção e interesse sua trajetória na música desde os primeiros passos públicos, recém-saído da adolescência, a frente da hoje extinta Nova Bossa. E, em 2016, tive a oportunidade de escutá-lo longamente, em uma tarde de entrevista sobre identidade, formação musical, atitude política e educação que resultou no terceiro ato do especial Quem somos nós por nós mesmos – Marcos Lamy: arte enquanto processo criativo.

À época, o público tinha à disposição para audição o solar EP Eu tô é tu (2013) e o inventivo álbum Cabeça ao Fai (2014), sobre os quais o músico abriu detalhes acerca das motivações e dos bastidores de criação e produção na referida entrevista. Na ocasião, marcou-me muito a inteireza de suas convicções artísticas, políticas e sociais e a aplicação destas em seus propósitos de vida. Em 2016, testemunhara um discurso que, tanto em 2020 quanto agora, em 2025, ressoa na prática ao se materializar em seus trabalhos mais recentes. E isso é raro.

Faço questão de resgatar o teor dessa conversa porque, quatro anos mais tarde, ao lançar Meio (2020) e agora, nove anos depois, com Braço de Mar (2025), tudo o que registrei em quase três horas de gravação, convertida em 34 páginas de áudio transcrito, segue válido e mais: se revela como a projeção de um futuro extremamente coerente e alinhado. Sobre o qual vale a pena comentar.


Os declarados interesses em ritmos percussivos e dançantes, a consciência política, a poesia apurada, a maranhensidade, a referência à sábia mãe de santo Luizinha, do Terecô de Codó-MA, (mencionada na entrevista e na letra de “Virá”, presente nos dois discos recentes) e seu exemplo de alteridade, a ode ao afeto parental e à construção do companheirismo conjugal, as parcerias, os vocais, a videografia, a sonoridade, toda a estética sonora e visual. É tudo deleite em ambos os álbuns. E se em Meio (2020) a atmosfera sonora é de convite à meditação, o que não exclui a abordagem crítica a noções políticas, como classe e cidadania, compatível com a época de lançamento; em Braço de Mar, Lamy refina ainda mais seu trabalho ao tirar o público para dançar com graça, leveza e um jeito todo seu de cantar a realidade construída com influências, inspirações e pares artísticos de inestimável valor cultural. Ouvinte de Gil, Caetano e Dominguinhos, Marcos Lamy sabe como beber nessas fontes para se inspirar e quem convidar para dar brilho às suas composições, vide as potentes participações de nomes como Núbia, Dicy e João Sá Viana.

E aí cabe destacar como o instrumental dos discos possui profundo efeito narrativo sob a poesia cantada e evolui com as regravações, como em “Lá vem” (“E sempre que vir o dia / um novo vento sopra / Vindo de outro lugar/ [...] Eu sou brisa tão leve / mas posso mudar”), que abre os trabalhos pela terceira vez sem soar repetitiva, pelo contrário: desde que nasceu em Cabeça ao Fai vem sendo reinventada ao incorporar novas cadências. Ainda em Meio, basta acompanhar a linha crescente que a flauta traça ao longo do disco e as marcações percussivas que ditam a trilha ritmada percorrida pelas referências que alimentam as composições.

Agora, em Braço de Mar (2025), o tom grave da travessia interior de Meio cede espaço à comunhão com o mundo natural e o caloroso reencontro humano que o forró promove. A começar pela canção inédita que batiza o disco e versa sobre as relações entre o tempo humano e o movimento das marés (Num dia o rumo é entrando pra areia / noutro é descendo pro mar / Quem sabe onde a onda vai / sabe demais / Corre o menino / Corre água / Corre o tempo também / Pra quê a pressa? Pra onde vão?”).

Assim, a onipresente sanfona do virtuoso Andrezinho conduz as 10 faixas do novíssimo disco em um passeio dançante por contos e causos de amor (A tua alegria era o que eu queria / Pra gente conversar / se acompanhar / bordar um beijo a cada passo que a gente dá”, “Menina do Zuza”) e humor (O forrozim tava bom / mas se chegar mais um bagunça / o Chico pega o prego / e prega a porta do salão”, “Mulecagem”)  sem renunciar ao diálogo com canções dos discos anteriores que seguem atuais enquanto mensagem e propósito, como “O que não é de mim” composta com o sempre parceiro Hermes Castro (“Ai de mim que nunca me queimei no sol / falar da sede / da sandália / do chapéu de palha [...] Mesmo eu que sempre canto meu amor / lembro do povo calejado / do corpo cansado”) e “Virá” (“Fui buscar o que eu não sou lá em Codó / Luizinha me falou: não estou só [...] Os pés se tornam caminho / A vela, o vento / o barco, o mar / Me carrega um redemoinho / Ainda que água / preciso ser ar [...] Sou eu aqui / ocupo meu lugar / E o que eu sou virá”).


Em tempo, como nada disso nasce e se materializa de um homem só, vale destacar quem, por trás das fichas técnicas, dá forma, brilho e acabamento aos processos. Assim, os discos se situam sob a apurada produção de Ico dos Anjos (Meio) e Memel Nogueira (Braço de Mar). Em Meio, os vocais contam com a potência e a suavidade de Núbia, Adnon Soares, Luiza Brina, Hermes Castro, YMA e Bruna Magalhães. Já em Braço de Mar, as incríveis vozes que se unem à de Lamy pertencem a João Sá Viana, Dicy Rocha, Lucas Ló, Clara Madeira, Hermes Castro, Forró do Mel (Giovanne Chaves, Érika Barreto, Thiago Garcês e Memel Nogueira), Ntomb'Yelanga e Maria Padilha; já os espetaculares instrumentais deste novo disco ficam a cargo de Vinícius Lima (percussão); Andrezinho (sanfona); João Simas (baixo e violão) e Ismael (baixo e violão). A competente assessoria de imprensa que vem permitindo a difusão do disco com a presença do artista em todos os meios é do sempre sagaz jornalista e radialista Gustavo Sampaio, a quem me reportei para solicitar os dados de ficha técnica e confidenciar que ouvir Braço de Mar não me deu escolha a não ser reparar meu atraso de cinco anos sem escrever sobre música.

Em 2020, Meio me confortou durante os meses de confinamento, acompanhando meu terapêutico processo de “reflorestamento” do quintal de casa. Foi um alento para mente e espírito inquietos, que graças àquelas músicas não se sentiu apartada de uma geração que compartilha de similares anseios sobre como estar no mundo. Naquele tempo, tomei notas sobre o disco e deixei-as repousarem até ouvir Braço de Mar no último domingo (25/05/2025), enquanto cuidava do jardim, e entender que chegara a hora de retomá-la, atualizando-as com o impacto que o profundo diálogo entre esses dois trabalhos faz emergir do seio da nossa preciosa cena musical. E merecem atenta audição. Vida longa entre nós.

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