[POSFÁCIO] "Maldição Madalena" (2023), Meiri Farias

Sempre acreditei na profunda relação de atravessamento e transbordamento que transforma ávidos leitores em escritores promissores. Há anos faço coro à defesa de que a leitura, em uma acepção ampla que contempla linguagens para além do código escrito, alimenta nossos agenciamentos no mundo.


Quando conheci Meiri Farias, lá pelos idos de 2015, a paulistana já era uma das leitoras de mundo mais vorazes de que tenho notícia até hoje, por isso nunca tive dúvidas sobre estar diante de uma operária da palavra que a qualquer momento se lançaria para além do Jornalismo. Ora, se à época, recém-formada em Comunicação, Meiri já chamava atenção por sua desenvoltura analítica e seu brilhantismo de raciocínio e argumentação, com os anos de estrada no Jornalismo Cultural e uma dedicação infinda aos estudos, era apenas questão de tempo até que seu vasto repertório cultural se colocasse a serviço do potencial literário que sempre correu em suas veias.

E que potencial! Em dez contos de precisão cirúrgica, reunidos neste volume de sugestivo título — Maldição Madalena e outros contos nervosos —, a Meiri escritora domina a narrativa curta com rigor e autenticidade. A cada texto, uma voz cheia de personalidade nos seduz linha após linha, fisgando nossa atenção para histórias de vida intrigantes, fascinantes, cativantes, inquietantes e surpreendentes.

O destaque fica para a construção de personagens femininas em constante diálogo e tensão com a criança interior, que elaboram a sobrevivência entre memórias doces e traumáticas, desabafos e revelações.

Com “Irene mente”, Meiri Farias abre o livro com uma anti-heroína volúvel, cuja vida é narrada, da infância à fase adulta, pela perspectiva do único objeto inanimado que sobrevive às trocas de pele da protagonista. Sacada ousada que proporciona um inteligente efeito narrativo para dar conta de uma complexa personalidade transtornada.

Na sequência, a contista explora a ficção especulativa com “Próximo desce”, sobre uma, aparentemente trivial, conversa entre duas passageiras a bordo de um ônibus. Ao adotar a expressão comum entre os usuários do transporte coletivo de São Paulo quando sinalizam ao motorista a parada de descida, o título do conto brinca com as múltiplas possibilidades de desembarque, que tanto podem ser da viagem sobre-humana a qual a massa proletária é submetida diariamente, quanto de uma desnorteante experiência sobrenatural altas horas da noite.

Nos contos “Casa com piscina” e “Comigo não morreu”, é a infância quem nos conduz pela inocência e descoberta do gosto do mundo, mostrando a extraordinária capacidade da autora em transitar por diferentes vozes narrativas com histórias de fundo mnemônico consistentes e produtoras de ternura.

        É também com um uso estilístico da linguagem, que “Meninozinho” confere força ao relato sobre a aridez que ronda o destino da Terra, em uma mistura de referências imagéticas que remetem ao cinema de Bacurau e A Estranha Vida de Timothy Green.

De volta à estrutura temporal de flashbacks entre infância e maturidade, “Melindrosa” funciona como um respiro cômico entre núcleos dramáticos, ao nos levar pelas peripécias da professora substituta Carolina, desastrada herdeira de uma elite decadente, que apesar dos esforços nada gentis da mãe, acaba reconhecendo a utilidade de tudo o que aprendeu nos balés, natações e ginásticas artísticas da vida ao se ver numa embaraçosa situação em que entrou por obsessão própria. O humor autorreferente da personagem diverte à moda da carismática Fleabag.

Não satisfeita em dominar a prosa curta, Meiri Farias quebra as linhas do conto convencional versejando o fluxo de consciência da pequena Milena ao desbravar na prática o conceito dicionarizado de “Sórdida”, em um dos textos mais pungentes do livro, que descreve com propriedade a aquisição da consciência de classe diante do choro de um pai desempregado.

Já em “Segredo de confissão”, o interesse temático pela volubilidade — já visto em “Irene mente” — retorna na figura de Marta, uma mulher que recorre à profanação das reminiscências de infância para alimentar sua instabilidade na vida adulta.

Abandono parental, abuso infantil, suicídio e stealthing[1] são alguns dos temas sensíveis abordados em “O sangue de Joana”, que retrata sem rodeios a cruel realidade de uma vida nascida sob o signo da violência e marcada por sucessivos ataques à integridade física e dignidade humana. Com a materialização fictícia de Joana, Meiri Farias amplifica a voz representativa de toda uma comunidade cuja existência segue sendo massacrada por atos de misoginia, essa aversão mórbida, perversa e criminosa ao ser mulher.

Depois do amargor necessário com que a história de Joana tempera a experiência de leitura, o penúltimo texto do livro é servido como as finas fatias de gengibre cuja função é renovar o paladar entre pratos da culinária oriental. Com “Figurinha premiada”, Meiri Farias narra a adorável jornada de um garotinho pela figurinha mais preciosa do álbum da copa (Lionel Messi!), perdida no metrô. Mais uma vez, o diálogo com a infância é o mote para a conexão entre personagens: Rosana e seu filhinho João conhecem o jornalista Túlio na fila dos achados e perdidos da Estação Sé, onde um breve diálogo faz surgir uma simpatia mútua entre os três. Dedicado a Aline Bei, o texto é um carinho de Meiri pela mentora com quem exercitou criação literária e ganhou impulso para a produção dos contos reunidos neste livro.

Encerrando o arco de seu primeiro livro solo, como Meiri gosta de definir, (afinal, já não se trata mesmo de uma iniciante no mundo das publicações), “Maldição Madalena” escancara até onde vai o ódio que escorre pela rede de boataria despropositada em volta de um nome feminino, quando tudo o que surge diante do olhar curioso é mais uma vida brutalmente interrompida.

Com um exímio uso da técnica e o domínio do talento para criação e escrita transbordando de Maldição Madalena e outros contos nervosos, Meiri Farias desponta no cenário da literatura brasileira como uma voz a se ouvir, ler e acompanhar por todos os abensonhados caminhos criativos que enveredar.

 

Talita Guimarães

Escritora, Jornalista e Professora de Língua Portuguesa e Literatura.

Autora dos livros Vila Tulipa (2007, Prêmio Odylo Costa, Filho) e Recorte! (2015).

Integra ainda as coletâneas São Luís em Palavras (2017) e Poetas Maranhenses (2022, Prêmio Gonçalves Dias).



[1] Prática que consiste na retirada do preservativo sem o consentimento da parceria durante o ato sexual. No Brasil, pode ser enquadrado como crime de violação sexual mediante fraude, conforme descrito no artigo 215 da Lei n.º 12.015/2009 (Código Penal), cuja pena prevê reclusão de dois a seis anos.

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