Pertenço à crença de que abrir um livro faz
parte de uma experiência ampliadora de sentidos. E é a escrita de mulheres com
a potência vital de Jorgeana Braga que me mantém convencida disso. txaiuirá é uma leitura sensorial, que
requer um mergulho de sentidos abertos por suas páginas de poesia tangível,
cujo frescor das imagens evocadas por uma escrita ritual nos transporta para
uma existência lado à lado à experiência sensível que transborda da autora.
Jorgeana nos escreve direto do seio da
Terra, com pés descalços em chão de terreiro, de dentro de um corpo cuja
afetividade busca despertar em seu interior cada nota passível de
ancestralidade em conexão com o mundo. Por isso estar na presença de sua poesia
significa ser convidada a conectar o corpo às paisagens e aos sentidos largos
capturados por seu olhar apurado.
“conexão com a terra o pé
a terra o pé a terra o pé aterra”
Em txai
uirá sua poesia constrói imagens cuja representação transcende a realidade
inteligível. E não é de hoje que a escrita da autora traz essa marca de
qualidade, ao conceber neologismos primorosos para fundir sentidos e articular com
precisão os elementos que lhes são simultaneamente fornecidos pelo real e seu
rico imaginário de sentidos.
“vez por outra
chanduca acesa e
estrelas se espalham na floresta”
Com talento particular, Jorgeana Braga
versifica reflexões profundas sobre afetividade, respeito, etnia, saudade,
memória, reverência, entre outros temas de matéria cara – e revigorante –
frente aos tempos sombrios, e ao mesmo tempo sagrados, atravessados pela nossa
humanidade não raro em frangalhos, que urge se religar.
“melhor trevo que treva”
Neste livro em especial, encontramos imagens
de uma força arrebatadora que nos convidam a retomar o sentido profundo da vida
na Terra: as cores da atmosfera terrestre nos territórios em trânsito; a poética
materialidade do tempo; o sentido de unidade contido no fluido humano que se
mistura ao extrato do fruto e tinge pele, terra e planta; o sabor dos gestos rituais
de mãos nativas; a matéria similar de que são feitos quintal e floresta; os
infinitos paralelos do que se sucede entre céu e terra:
“neblina é terra
defumando
a chuva”
E mais: a convivência libertadora com a
espiritualidade e a sabedoria dos povos originários delineia uma perspectiva de
vida que rompe com a normalizada pela experiência bruta nas cidades, afinal:
“não há fé no asfalto
a gente tem que subir o morro pra isso”
Por tudo posto, é lindo ler Jorgeana. Inspirador
testemunhar sua voz poética unir-se à natureza verso após verso, em uma jornada
de cura e descobertas, entre preservação de mistérios e revelação.
“numa pana verde que vai pro chão
estendo a esteira do caboclo
e (ch)oro
levanto e planto
o que re colhi”
Porque apreender a verdade contida na
leitura poética do cotidiano é virtude encontrada apenas na escrita dos que se
entregam à experiência de sentir a pulsação do mundo, percorrer txai uirá é estar em trânsito com uma
autora que vai do litoral ao sertão, do portinho em São Luís-MA à aldeia
Fulni-ô em Águas Belas-PE, coletando narrativas dotadas da magnitude da essência,
que tocam a natureza mais pura, e por isso clarividente, das coisas.
Em honra ao título, o percurso poético posto
nesta obra de delicadeza e potência singulares é a rota de um pássaro (“uirá”,
do tupi wyrá) que alça voo das pontas
dos dedos verdes da autora para pousar no coração com sede de mundo de quem a
lê. É como a saudação que nos curva à divindade que habita todas as coisas
vivas. Encantaria. Em profunda gratidão, o que nos cabe é retribuir: Txai, Jorgeana! Txai!
Talita Guimarães
Escritora, Jornalista e Professora
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