[PREFÁCIO] "txaiuirá" (2023), Jorgeana Braga

          Pertenço à crença de que abrir um livro faz parte de uma experiência ampliadora de sentidos. E é a escrita de mulheres com a potência vital de Jorgeana Braga que me mantém convencida disso. txaiuirá é uma leitura sensorial, que requer um mergulho de sentidos abertos por suas páginas de poesia tangível, cujo frescor das imagens evocadas por uma escrita ritual nos transporta para uma existência lado à lado à experiência sensível que transborda da autora.


 Jorgeana nos escreve direto do seio da Terra, com pés descalços em chão de terreiro, de dentro de um corpo cuja afetividade busca despertar em seu interior cada nota passível de ancestralidade em conexão com o mundo. Por isso estar na presença de sua poesia significa ser convidada a conectar o corpo às paisagens e aos sentidos largos capturados por seu olhar apurado.

 “conexão com a terra o pé a terra o pé a terra o pé aterra”

 Em txai uirá sua poesia constrói imagens cuja representação transcende a realidade inteligível. E não é de hoje que a escrita da autora traz essa marca de qualidade, ao conceber neologismos primorosos para fundir sentidos e articular com precisão os elementos que lhes são simultaneamente fornecidos pelo real e seu rico imaginário de sentidos.

“vez por outra

chanduca acesa e

estrelas se espalham na floresta”

Com talento particular, Jorgeana Braga versifica reflexões profundas sobre afetividade, respeito, etnia, saudade, memória, reverência, entre outros temas de matéria cara – e revigorante – frente aos tempos sombrios, e ao mesmo tempo sagrados, atravessados pela nossa humanidade não raro em frangalhos, que urge se religar.

 “melhor trevo que treva”

 Neste livro em especial, encontramos imagens de uma força arrebatadora que nos convidam a retomar o sentido profundo da vida na Terra: as cores da atmosfera terrestre nos territórios em trânsito; a poética materialidade do tempo; o sentido de unidade contido no fluido humano que se mistura ao extrato do fruto e tinge pele, terra e planta; o sabor dos gestos rituais de mãos nativas; a matéria similar de que são feitos quintal e floresta; os infinitos paralelos do que se sucede entre céu e terra:

 “neblina é terra

defumando

a chuva”

 E mais: a convivência libertadora com a espiritualidade e a sabedoria dos povos originários delineia uma perspectiva de vida que rompe com a normalizada pela experiência bruta nas cidades, afinal:

 “não há fé no asfalto

a gente tem que subir o morro pra isso”

Por tudo posto, é lindo ler Jorgeana. Inspirador testemunhar sua voz poética unir-se à natureza verso após verso, em uma jornada de cura e descobertas, entre preservação de mistérios e revelação.

 “numa pana verde que vai pro chão

estendo a esteira do caboclo

e (ch)oro

levanto e planto

o que re colhi”

Porque apreender a verdade contida na leitura poética do cotidiano é virtude encontrada apenas na escrita dos que se entregam à experiência de sentir a pulsação do mundo, percorrer txai uirá é estar em trânsito com uma autora que vai do litoral ao sertão, do portinho em São Luís-MA à aldeia Fulni-ô em Águas Belas-PE, coletando narrativas dotadas da magnitude da essência, que tocam a natureza mais pura, e por isso clarividente, das coisas.

 Em honra ao título, o percurso poético posto nesta obra de delicadeza e potência singulares é a rota de um pássaro (“uirá”, do tupi wyrá) que alça voo das pontas dos dedos verdes da autora para pousar no coração com sede de mundo de quem a lê. É como a saudação que nos curva à divindade que habita todas as coisas vivas. Encantaria. Em profunda gratidão, o que nos cabe é retribuir: Txai, Jorgeana! Txai!

 

Talita Guimarães

Escritora, Jornalista e Professora

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